A MERCANTILIZAÇÃO DA CULTURA

Apropriação Cultural não é simplesmente adotar aspectos de uma outra cultura. Ela caracteriza-se propriamente quando uma cultura dominante toma para si elementos de uma outra, cujos membros já foram oprimidos por esse mesmo grupo mais influente.
A pesquisadora Melody Brasil Erler Von Erlea [1] levanta uma importante reflexão: “[...] a que ponto uma indústria feita pela civilização exploradora pode se inspirar e se basear na cultura explorada?”. Muitas marcas, pelo simples prazer estético, tendem a utilizar elementos de diversas culturas chamando de inspiração e, por vezes, ignoram a importância dos símbolos apropriados.
Como dito no Dicionário [2], o significado do substantivo Moda é um uso passageiro que rege, de acordo com o gosto do momento, a maneira de viver, de vestir, etc. Anne Hollander [3] afirma que “[...] a roupa é uma forma de arte visual, uma criação de imagens com o eu visível como seu meio.” Segundo Lars Svendsen [4] a “[...] identidade torna-se algo que precisa ser criado, e essa criação se funda numa interpretação de quem somos e numa avaliação forte de quem deveríamos ser”.
A moda desde os remotos tempos é a expressão de uma cultura, portanto, todo processo de criação ou inspiração tem em seu íntimo um constante anseio por significados, os quais são preenchidos mediante o uso de referências, histórias, a vida em sociedade, isto é, tentativas de dizer alguma coisa. De todo modo, caso se tenha por objetivo a venda de valores simbólicos, então, deve-se fazer algo para que tais símbolos representem alguma coisa.
Em se tratando de valores simbólicos, há de se notar um grande valor agregado, visto que essas referências pertencem a uma cultura. Tais referências, por sua vez, estão ligadas às tradições, à cosmovisão de um povo. A problemática central revela-se quando esses símbolos e referências são usados por determinadas pessoas que não pertencem e/ou não estão ligadas àquele grupo que detém tais símbolos, pelo simples fato de não fazerem parte como um todo dessa cultura.
Atualmente, com o desenvolvimento tecnológico, as pessoas têm fácil acesso a informações e à diversidade que há no mundo. São cores, sabores e estilos variados. Ter conhecimento e apreço sobre esses determinados estilos de vida, muita das vezes desperta no ser humano o interesse em trazer para o seu dia a dia algo que tanto o chamou atenção numa outra cultura.
Com esse cenário de pessoas cada vez mais informadas, surge uma nova possibilidade de se fazer publicidade. São os chamados Digital Influenciers, que são pessoas que formam opinião, tendência e influenciam outras pessoas por meio das redes socais, despertando desejo de ter determinado objeto que está sendo usado em uma propaganda, como por exemplo um turbante [5].
A questão é que ter acesso a várias culturas não torna nenhuma pessoa integrante dessa nova cultura, afinal, isso se dá com anos de interação social, tendo a participação como afirmação da sua própria identidade. O uso de um turbante por uma pessoa que desconhece a sua origem, afeta de forma negativa o sentimento de pessoas que integram o grupo que deu origem ao uso do turbante, por motivos pertencentes àquele povo.
Susan Scafidi [6], comenta que o ato de tirar propriedade intelectual, expressões ou artefatos culturais, história e maneiras de conhecimento de uma cultura que não é sua é denominado como apropriação cultural.
Ao se falar em Apropriação Cultural, há de se deparar com posições que dizem que o uso de um determinado acessório, estampa, cores, símbolos, músicas, ou como por exemplo o uso do Turbante, etc., é um modo de homenagear aquela cultura ao qual o acessório pertence. Por outro lado, também tem a posição daqueles que são atingidos de maneira negativa, pois assistem seus valores sendo cultivados por pessoas que nem sabem da história e o motivo pelo qual pertence àquele grupo, e veem sua tradição se tornar um bem de consumo, principalmente na moda, com acesso restrito e com um grande valor financeiro agregado.
A diversidade em termos de cultura é muito vasta, motivo pelo qual se tem a capacidade de fazer uma troca, um intercâmbio de culturas, as quais uma afeta a outra, e isso é positivo. A crítica que se faz é quando, uma produção de moda ao ser mostrada ao público apresenta semelhanças em relação a um determinado povo, que em nada tem, em termos de relação, com o autor dessas criações. Com efeito, ao se falar de Apropriação Cultural, é preciso ter em mente que se trata de um fenômeno estrutural, e não de algo particular de uma determinada pessoa.
Neste contexto, percebe-se que imagem para o Direito não se limita no campo das ideias, mas sim quando por meio de uma representação, como por exemplo, a artística, possa-se reconhecer o indivíduo e, na esfera da apropriação cultural, o significado de “reconhecer o indivíduo” se dá quando o reconhecimento é por um povo que é pertencente a uma determinada cultura.
O consumidor que não possui autocrítica ou mesmo conhecimentos sobre o que seja apropriação cultural, muita das vezes, consome sem saber a gravidade dos problemas que causa a grupos ou povos socialmente marginalizados e oprimidos pela indústria. Vive-se hoje em um mundo capitalista, em que tudo vira mercadoria, e a apropriação cultural é usada para garantir o lucro transvestida de “inspiração”.
Quando se fala em Apropriação Cultural não se está se referindo a pequenas semelhanças, um mero recorte ou um triângulo para cima e outro para baixo. Está se falando sobre a cosmovisão de um povo, a origem relatada em cores, formatos, bordados, etc., que são elementos identitários de uma cultura, sendo isso a característica peculiar que a diferencia das demais, fazendo parte de sua vivência desde os primórdios, passando de geração em geração, em cada ceio familiar. É por consequência disso, que quando esses elementos são usados por uma marca terceira, sem fazer nenhuma menção ou referência à cultura originária da obra, essa mesma cultura sabe que se trata de uma criação que lhe pertence, há um reconhecimento instantâneo por todas as pessoas pertencentes àquela cultura. Não se trata de uma ideia refletida numa peça de moda, mas sim da identidade de um povo que se tornaram invisíveis diante da visibilidade de um renomado estilista de grife.
Ao se ter uma ideia e colocando-a no papel, apresentando-a como sua é algo lícito e que é de direito de todo o ser humano, inclusive, trata-se de um direito fundamental [7]. O conjunto de questões em que se baseia este artigo é referente ao uso inapropriado de elementos identitários de um acervo cultural de um povo, que vê sua história sendo contata por quem não é de direito, portanto, sem autorização.
Conforme pioneira decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem se estabelecido como parâmetro à jurisprudência formada a respeito dos critérios, nos casos de violação de direito autoral, no que tange à indenização [8].
[...] Ficaria abalado esse sistema legal, se a reprodução fraudulenta ou ilícita desse lugar apenas a uma reparação pecuniária equivalente
ao que receberia, se houvesse concordado com a reprodução. A consequência do ato vedado não pode ser a mesma do ato permitido, sobretudo há implicações de ordem moral. Por isso, a lei dá ao autor o direito de apreender os exemplares existentes e de receber indenização equivalente ao “valor de toda a edição”, à base do preço que teriam os exemplares “genuínos”, isto é, autorizados regularmente deduzindo-se o valor dos que tenham sido apreendido.
Como bem colocado na referida decisão, há implicações de ordem moral, devendo ser uma questão para ser inserida em debates jurídicos para que povos como esses que veem uma violação cultural sendo realizada em sua comunidade, consigam encontrar no Direito um respaldo eficiente. Não se trata do valor de uma indenização em casos como esses, mas sim do reconhecimento como verdadeiros autores de elementos que estão circulando em grandes obras em vitrines, com preços bem mais significativos do que a cultura originária arrecada com as mesmas vendas.
O mercado da moda está cada vez mais consciente e empregando meios para se estruturar em torno de causas sociais. Contudo, nem sempre as intenções são de boa-fé. Aliás, o consumidor precisa olhar para o que está além da comunicação da empresa, como afirma André Carvalhal, autor da obra Moda com Propósito [9].
Muitos discutem sobre Apropriação Cultural, outros não acreditam que seja algo para ser debatido. No entanto, para compreender o que é, precisa-se ser consciente e olhar para a realidade em que se vive hoje, especialmente em uma cultura industrial extremamente capitalista em que tudo vira mercadoria.
Por Andreza Cristina dos Santos Borges, advogada e articulista de jornal em mídia física e digital.
Nota de Rodapé
[1] ERLEA, Melody Brasil Erler von. Uso do imaginário cultural negro e apropriação cultural na moda ocidental. 11º Colóquio de Moda – 8ª Edição Internacional. 2015. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/anais/Coloquio%20de%20Moda%20-%202015/COMUNICACAO-ORAL/CO-EIXO3-CULTURA/CO-3-USO-DO-IMAGINARIO-CULTURAL-NEGRO.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019.
[2] DICIO. Moda: significado de moda. Disponível em: http://dicio.com.br/moda. Acesso em: 24 ago. 2019.
[3] HOLLANDER, Anne. Seeing through clothe. Berkeley: CA, 1975; rev. 1993. p. 311.
[4] SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. São Paulo: Zahar, 2010.
[5] Adereço de cabeça, formado por uma longa faixa de tecido.
[6] SCAFIDI, Susan. Who owns culture? appopriation and authenticity in american law. Rutgers University Press, 2005.
[7] Artigo 5º inciso XXVII da Constituição Federal.
[8] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 56.904/SP julgado em 06.12.1965, por votação unânime, da sua Primeira Turma, relator o Ministro Victor Nunes Leal.
[9] CARVALHAL, André. Moda com propósito: manifesto pela grande virada. São Paulo: Paralela, 2016.