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FASHION LAW e a LGPD: O USO DA TECNOLOGIA E DO BIG DATA COMO ESTRATÉGIA COMERCIAL

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A empresa sueca H&M, conhecida no varejo em razão das quase cinco mil lojas espalhadas no mundo, vem utilizando a tecnologia e o big data [1] para identificar interesses e preferências dos consumidores. Na Alemanha, e especificamente na cidade de Berlim, por meio de dados de geolocalização e análise de cookies, a marca está produzindo coleção de roupas contendo estampas, cores, materiais e modelos que os usuários da localidade se interessam.

 

A H&M vem mostrar que hoje o universo tecnológico traz inúmeras vantagens competitivas que podem ser usadas pelas empresas no oferecimento de seus produtos e serviços. Como consequência, por meio do tratamento de dados pessoais, as empresas podem definir diversos perfis, mapear as características e interesses de um público alvo, direcionando a confecção de produtos conforme gostos particulares. Ou seja, é a tecnologia sendo utilizada para a otimização das vendas, com a proposta de substituir as decisões humanas, consideradas naturalmente falhas e enviesadas, pelas escolhas algorítmicas, vistas como mais eficientes, objetivas e imparciais [2].  

 

A estratégia da empresa sueca, com o uso do big data, foi realizar produção sob demanda. Com isso, conseguiu também a diminuição com custos de transporte, produção e armazenamento, por meio da otimização de suas vendas. A ideia do ponto de vista do consumidor também é atraente:  os consumidores dos produtos encontrariam exatamente os seus produtos de interesse nas lojas da localidade! Se de um lado temos consumidores satisfeitos com o atendimento de suas preferências, de outro temos a empresa aumentando a efetividade das vendas devido à análise prévia do perfil consumidor

 

Contudo, com as leis de proteções de dados recentes, entre elas, o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu (GDPR ) e a lei nacional 13.709/18 (LGPD) em vacatio legis, o tratamento de dados pessoais deve ser feito apenas se legitimado entre as hipóteses legais, sem distorcer finalidades esperadas pelos titulares. Com base na LGPD, os dados usados pela H&M podem ser considerados dados pessoais ou dados anônimos? Dados anônimos não são protegidos, sendo livre seu tratamento pelas empresas, pois não contemplam as características dos dados pessoais [3]. Se forem dados pessoais, qual o limite de a empresa usar dados provenientes dos interesses dos indivíduos para direcionar seus produtos e serviços sem o consentimento prévio? Haveria a necessidade de informar que os cookies seriam rastreados e usados para tais fins?

 

A LGPD prevê, em seu artigo 7º, hipóteses de tratamento para os dados pessoais. Entre eles, está o legítimo interesse do controlador ou terceiro (inciso IX) [4], a não ser que prevaleçam direitos e liberdades fundamentais do titular dos dados. Seria, portanto, a publicidade e oferecimento de produtos da H&M, que visam a otimização de suas vendas com peças fabricadas a partir dos perfis analisados de um grupo de pessoas de determinada área, uma ameaça às garantias fundamentais? Ou apenas o legítimo interesse da empresa em atender às necessidades de um público específico?

 

Em primeiro lugar, é necessário analisar se os dados coletados são dados anônimos ou não (se anônimos, não se aplicam as leis de proteção de dados). Caso sejam considerados dados pessoais, entra-se na discussão do legitimo interesse da empresa para avaliar a estratégia feita por meio da tecnologia (big data analytics). No caso da cidade de Berlim, o tema provavelmente será destinado à Autoridade Nacional da Alemanha [5], ou avaliado com as bases legais utilizadas para justificar tal estratégia (como a possibilidade da coleta de consentimento, art. 7º, I LGPD).

 

O uso do big data demonstra que os resultados úteis da análise dos dados surgem, muitas vezes, distantes da finalidade inicial para as quais foram coletados [6], ou, então, big data é um conjunto de dados coletados para um propósito determinante e reprocessados para atender a outras finalidades, oferecendo informações valiosas e vantagens competitivas [7]. Em extenso relatório divulgado pela Comissão Europeia em janeiro de 2017, concluiu-se que o instituto do consentimento tem se tornado um pesado fardo a ser carregado pelas empresas e não necessariamente é capaz de prover a proteção almejada à privacidade dos cidadãos [8]. Assim, as empresas procuram evitar ao máximo a necessidade do consentimento, tendo em vista que a sua revogação é direito do titular (art. 18, IX, LGPD) e o procedimento para isso deve ser gratuito e facilitado, conforme previsto na lei nacional (art. 8º, parágrafo 5º, LGPD). Dessa forma, a empresa perderia a hipótese legal para tratar os dados coletados.

 

O caso H&M não é isolado. O uso de tecnologias está cada vez mais presente no comércio em geral. Muitas empresas no mercado da moda estão buscando melhorar sua performance de vendas e a diminuição do descarte de peças que ocorre a cada troca de coleção, seja pelo uso da tecnologia ou pela compra de relatórios que analisam comportamentos e interesses dos consumidores. Uma dessas empresas é a Worth Global Style Network [9], da Inglaterra, que teve grande crescimento nos últimos dois anos vendendo relatórios para varejistas. A empresa americana Stylesight, que também promove previsões de tendências, com mais de 3.000 assinantes [10].

 

Além disso, o caso de sucesso da Amazon é um ótimo exemplo. A empresa iniciou a venda direta ao consumidor no Brasil no início do ano, atendendo inclusive a categoria de roupas e acessórios de moda. A loja Amaro utiliza a tecnologia para mostrar campanhas e produtos de acordo com as preferências do cliente. Veja-se que a Nike utiliza o big data por meio dos wearables [11] capazes de gerar informações relacionadas à distância percorrida, velocidades, locais preferidos para treino, entre outros interesses do consumidor. A Netshoes também utiliza a tecnologia do big data para atingir suas metas de vendas a partir da compreensão do perfil de seus clientes. Estudo realizado no início do ano de 2018 pela E-consulting, sobre transformação digital no varejo, apontou a empresa, entre duzentas pesquisas, como varejo eletrônico que melhor alia o digital à estratégia do negócio [12], sendo uma das empresas mais desejadas no mercados pelas informações de dados que possui [13]. Esses são apenas exemplos de muitos cases da indústria fashion que demonstram que a tecnologia da informação ferramentas de aprimoramento na mineração de dados contribuem para melhorar estratégias empresariais, aumentando a satisfação do consumidor final.

 

De fato, o uso do big data analytics surge como uma ferramenta do e-commerce. Seu uso facilita as vendas por meio de direcionamento de produtos e serviços personalizados, que por meio de algoritmos, personalizam os serviços conforme o perfil acessado. Assim, é possível analisar a interação diária dos usuários com centenas de produtos e marcas, atingindo dados apurados para que decisões mais precisas sejam tomadas pelo setor como um todo, desde campanhas com a marca até a produção de novas coleções.

 

Independentemente das estratégias empresariais, passa a ser relevante a avaliação se os dados usados são públicos ou se estamos diante de alguma situação em que a vantagem competitiva em relação aos concorrentes não foi decorrente de estratégias eficientes permitidas pela LGPD [14]. A consequência direta do oferecimento de um serviço personalizado e produtos que satisfazem os interesses do público consumidor é positiva. Resta, então, saber, em cada caso, a licitude do acesso aos dados e a adequação do seu tratamento conforme a LGPD.


 

Por Pietra Daneluzzi Quinelato (Advogada no Mansur Murad Advogados - Propriedade Intelectual e Data Privacy) e Juliana Oliveira Domingues (Advogada e PhD, Professora de Direito Econômico e Direito Antitruste na USP)

NOTAS DE RODAPÉ:

 

[1] O termo big data reflete a possibilidade de processar grande quantidade de dados digitais visando a criação de valor econômico. Essa ferramenta se sustenta pelos conhecidos 6vs: volume, velocidade, valor, validação variedade e veracidade. BAGNOLI, Vicente. A definição do mercado relevante, verticalização e abuso de posição dominante na era do BIG DATA. In: Direito Antitruste 4.0. Fronteiras entre concorrência e inovação. Coordenação: Juliana Oliveira Domingues et al, organizadores – São Paulo: Singular, 2019. p. 45-56.

[2] FRAZÃO, Ana. Big data e impactos sobre a análise concorrencial. Parte I. Jota. Disponível em:

<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/big-datae-impactos-sobre-a-analise-concorrencial-29112017>; FRAZÃO, Ana. Big data e impactos sobre a análise concorrencial. Parte II. Jota. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-eanalise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/big-data-e-impactos-sobre-analiseconcorrencial-13122017>; FRAZÃO, Ana. Big data e impactos sobre a análise concorrencial. Parte III. Jota. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicaoempresa-e-mercado/big-data-e-impactos-sobre-analise-concorrencial-2-07022018>.

 

[3] O conceito de dado pessoal como qualquer informação ou conjunto de informações que identifica ou pode tornar identificável um indivíduo, sendo que a proteção do dado pessoal é considerada um direito fundamental. Lei 13.709/18.

[4] No Regulamento Geral de Proteção de Dados GDPR o legítimo interesse é base legal, nos mesmos termos, elencada no art. 6º, 1, f: O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações: (...) O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança. 

[5] Na Europa, o Regulamento Geral de Proteção de Dados está vigente desde 2018 e as autoridades nacionais dos países europeus fiscalizam atividades que violam os princípios e direitos lá esposados. A autoridade alemã, BfDI[1] possui cerca de cento e oitenta funcionários que zelam pela garantia da privacidade dos indivíduos. Disponível em: https://www.bfdi.bund.de/DE/Home/home_node.html . Acesso em: 06.06.2019.

[6] PINHO. Rodrigo Dias de Pinho. DESAFIOS À PRIVACIDADE: BIG DATA, CONSENTIMENTO, LEGÍTIMOS

INTERESSES E NOVAS FORMAS DE LEGITIMAR O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2017/03/Rodrigo-Gomes.doc-B.pdf . Acesso em 07.06.2019.

[7] BAGNOLI, Vicente. A definição do mercado relevante, verticalização e abuso de posição dominante na era do BIG DATA. In: Direito Antitruste 4.0. Fronteiras entre concorrência e inovação. Coordenação: Juliana Oliveira Domingues et al, organizadores – São Paulo: Singular, 2019. p. 48.

[8] “Based on these issues relating to the scope, the consent mechanism and enforcement, competent authorities interviewed by Deloitte pointed out that this provision causes an unnecessarily high burden for businesses, while the usefulness for citizens is not optimal”. Evaluation and review of Directive 2002/58 on privacy and the electronic communication sector. FINAL REPORT. A study prepared for the European Commission DG Communications Networks, Content & Technology by Deloitte, 2017. Disponível em: <http://ec.europa.eu/newsroom/document.cfm?doc_id=41232>. Acesso em: 11 jan. 2017.

[9] Disponível em: https://www.wgsn.com/pt/ . Acesso em 07.06.2019.

[10] EXAME. Tecnologia. Previsões da Moda Passam pelo Big Data. Disponível em>: https://exame.abril.com.br/tecnologia/previsoes-da-moda-passam-pelo-big-data/ . Acesso em: 07.06.2019.

[11] Como o applewatch, wearable é a palavra que resume o conceito das chamadas “tecnologias vestíveis”, que consistem em dispositivos tecnológicos que podem ser utilizados pelos usuários como peças do vestuário.

[12] Logo abaixo da NETSHOES, encontra-se o Grupo Pão de Açúcar, Walmart, B2W e Carrefour. ÉPOCA NEGÓCIOS. Fonte: Estudo realizado pela Empresa E-consulting Corp em setembro de 2018. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/01/estudo-aponta-netshoes-como-varejo-eletronico-que-melhor-alia-o-digital-estrategia-do-negocio.html . Acesso em: 07.06.2019.

[13] Magazine Luiza oferece 93 milhões de dólares pela empresa NETSHOES. TECMUNDO. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/mercado/142275-conselho-netshoes-aceita-oferta-compra-da-magazine-luiza.htm . Acesso em:08.06.2019.

[14] Para que a monetização, análise e automação possam se adequar às proteções que a recente legislação pertinente exige, será necessário um trabalho de conscientização e/ou alfabetização tecnológica entre investidores, empresários e a própria população. In: Direito Antitruste 4.0. Fronteiras entre concorrência e inovação. BAPTISTA, Adriane Nakagawa. BIG DATA: OS INDIVÍDUOS, SEUS DADOS E AS MUDANÇAS DE PARADIGMA TECNOLÓGICO E JURÍDICO Coordenação: Juliana Oliveira Domingues et al, organizadores – São Paulo: Singular, 2019. p. 37.

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